A Lei de Atividades básica e seu irracional senso comum.
Cyrlston M. Valentino* e Ismar A. de Moraes**
2019
Na linguagem coloquial usa-se a expressão “essa moda pegou” para
identificar situações que passaram a se repetir, independente de representarem contribuições
para determinadas práticas que acabam se consolidando.
Algo semelhante poderia ser dito para o uso de “a lei pegou”, e é
lamentável quando a “lei pega” e passa a ser aplicada sem atingir os propósitos
para os quais foi criada, a despeito de conter uma redação de leitura fácil e
inteligível.
É o caso da Lei nº 6.839/1980, que dispõe sobre o registro de
empresas nas entidades fiscalizadoras do exercício de profissões, e equivocadamente
apelidada de “Lei da atividade básica”.
Tal lei traz:
Art. 1º O registro de empresas e a anotação dos profissionais legalmente habilitados, delas encarregados, serão obrigatórios nas entidades competentes para a fiscalização do exercício das diversas profissões, em razão da atividade básica ou em relação àquela pela qual prestem serviços a terceiros.
Como se vê sem qualquer esforço, são dois
os fatores previstos no artigo 1º que vinculam o registro de empresas em
determinados Conselhos de Fiscalização e que exigem a contratação de
responsáveis técnicos de determinadas áreas: a atividade básica desempenhada
pela empresa; OU a atividade pela qual a empresa presta
serviços a terceiros.
Ao se valer da conjunção alternativa
‘ou’, decerto quis o legislador definir que quaisquer das hipóteses (se
presentes) ensejariam o registro em Conselho de Fiscalização do Exercício Profissional
e a contratação de responsável técnico.
Entretanto, certo é que a atividade
mencionada na segunda hipótese (“atividade pela qual a empresa presta serviços
a terceiros”) não precisa ser a atividade básica.
Dito de outra forma, por força da parte
final do artigo 1º acima transcrito, se determinada empresa exerce alguma
atividade privativa de determinada profissão em benefício de terceiros, deve
ela (a empresa) registrar-se no Conselho e contratar o profissional competente,
mesmo que a sua atividade não seja a sua principal ou básica. Todavia, na prática percebemos que as
empresas e os Tribunais se limitam a invocar e a aplicar a primeira hipótese
(atividade básica), fato este que gerou uma espécie de “irracional senso
comum”, tanto é que, como já dito, é conhecida como a “Lei da Atividade
Básica”.
No caso da
veterinária, essa leitura traz transtornos e necessidade de constantes recursos
no Judiciário, haja vista a tentativa de usurpação de direitos consagrados
desde a publicação da Lei Federal 5.517/1968 no que se refere à necessidade de
registro no sistema CFMV/CRMVs e também quando outras profissões invocam o
entendimento apenas em seu caráter parcial para garantir, acima do Direito,
obter vantagens para exercer a responsabilidade técnica em atividades da
competência exclusiva de médicos veterinários.
À luz da Lei nº 6.839/1980, deverá ser
o entendimento geral que a atividade básica (ou principal) é apenas um dos
fatores que vinculam as empresas a determinados Conselhos (não o único), de
modo que, caso a entidade exerça atividade (ainda que periférica ou esporádica)
que exija a participação privativa de determinado profissional, o registro e a
contratação do referido profissional devem ocorrer.
Nesse cenário, pertinente se mostra a
transcrição da fundamentação utilizada pelo Juiz Federal Valmir Martins Peçanha
e que serviram de subsídio para o Ministro Sepúlveda Pertence julgar o Recurso Ordinário
em Mandado de Segurança (RMS) nº 20976/DF, cujo voto foi acompanhado à unanimidade pelos demais
Ministros do Supremo Tribunal Federal:
“A Lei 6839, de 30/10/80, em seu artigo 1º estabeleceu que o registro de
empresas nas atividades competentes para a fiscalização do exercício das
diversas profissões será feito em razão da atividade básica ou em relação àquela
pela qual prestem serviços a terceiros.
Tem-se, pois, mais que um evento a determinar
a formalização do registro: atividade básica ou prestação de serviços a
terceiros. Esses eventos podem ser coincidentes num mesmo ramo, isto é, através
da atividade básica serem prestados serviços a terceiros, como podem apresentar
diversidade, sendo uma a atividade básica e a prestação de serviço ligar-se a
outra ou outras atividades. Ainda possível a empresa ter duas atividades
básicas paralelas. É a vida, a dinâmica que a empresa tem ou se propõe a ter
que vai determinar a necessidade do registro, desde que a atividade ou a
prestação de serviço caracterize o exercício de uma profissão reconhecida em
lei”.
O que se apresenta cristalino (a nós, ao citado Juiz Federal e aos Ministros do STF) é que não apenas a atividade básica da empresa define a necessidade, ou não, da contratação do responsável técnico e do registro da empresa no sistema CFMV/CRMVs.
*Cyrlston M. Valentino – Advogado – OAB/DF nº 23.287.
**Ismar A. de Moraes, Médico Veterinário – CRMV-RJ nº 2753.