Veterinária em Foco

Humanização dos animais: Linha tênue entre bem-estar animal e sofrimento animal

  Ana Cerqueiro*

2019.

Ao longo dos últimos vinte anos atuando como Médica Veterinária de pequenos animais domésticos tenho acompanhado uma mudança significativa no comportamento, na atitude, nos pensamentos e nas reações de proprietários de animais. Mudanças essas que trouxeram sim, como consequências, grandes e expressivas melhorias para os animais em si, haja vista a expectativa de vida deles ter aumentado significativamente graças a ações coordenadas de profilaxia de doenças, boa alimentação e bem-estar animal. Mas até que ponto o bem-estar proporcionado ao animal não lhe causaria sofrimento?

Proponho uma reflexão sobre esse assunto, pois tenho percebido em diversas situações atitudes de muitos proprietários, que poderiam a curto e longo prazo prejudicar o animal.

Quais atitudes seriam essas? Refiro-me a donos (o termo politicamente correto hoje em dia seria tutor), que permitem que seu animal durma consigo na mesma cama desde filhote sem perceberem que este filhote irá crescer podendo atingir até 47 kg  dependendo da raça, tornando muito difícil futuramente de se retirar algum hábito reforçado. Imaginem um filhotinho lindo e fofo de Rottweiller pesando 1,5 kg e sendo acostumado desde sempre a dormir na cama com os donos. Imagine esse mesmo cão com 47 kg, adulto, mais brabo, e não permitindo que o esposo se deite na cama com a esposa, pois o cão avança nele. Por mais absurdo que possa parecer, ouço isso com mais frequência do que gostaria, e ao me procurarem com essas queixas, não hesito em dizer que o animal não tem culpa alguma, pois esta atitude foi reforçada ao longo de anos de permissão sem a presença de donos firmes que realmente amem seus animais, o tratem muito bem, mas saibam identificar que nas suas casas o dono da casa também é o dono do cão e quem dita as regras na casa são os seres humanos.

Tudo se baseia no bom senso. Há cães e gatos de porte pequeno que não causariam nenhum problema simplesmente pelo fato de dormirem com seus donos. Refiro-me ao fato destes animais se apossarem da cama ou outro objeto da casa e impedirem que seus donos os usufruam.

Essa humanização dos animais, que vem ocorrendo gradativamente ao longo de anos, pode provocar diversos transtornos de comportamento e problemas de saúde dos animais, dentre eles: agressividade, dificuldades de socialização, transtornos alimentares, perda de identidade (quanto mais o animal é tratado de forma humana, mais ele se esquece de seus instintos naturais e deixa de ser quem é . É muito comum hoje em dia  os animais em carrinhos de nenéns , com chupetas e roupas de recém nascidos, podendo gerar uma grande confusão de percepção pro animal se encaixar num ambiente diferente do que seus instintos lhe ditam além de uma perda dos princípios de hierarquia, onde o  animal se esquece quem é o líder da casa,problemas de saúde. Muitos donos acabam utilizando nos seus animaizinhos, os mesmos medicamentos seus e produtos de higiene humanos sem consultar um veterinário e não raro ocorrem sérios problemas inclusive óbito. Exemplo comum são donos que administram antinflamatórios humanos nos seus cães e gatos, sem saberem que podem provocar óbito nos animais.

Estamos diante de uma nova estrutura chamada famílias multiespécies, onde precisamos ajudar principalmente os animais que são tratados como pessoas, lembrando que todo animal merece respeito, carinho, bons tratos, boa alimentação, vacinação preventiva de doenças, profilaxia para diversas patologias, atenção… mas também precisa ser feliz principalmente tendo sua essência animal valorizada.

Essa dualidade tem gerado diversas discrepâncias de valorização da vida, como por exemplo no caso da supervalorização e mobilização pela defesa dos ovos de tartaruga em risco de extinção  que realmente merecem todo nosso empenho, e quase nenhuma mobilização  pela defesa dos nenéns humanos ameaçados pelo aborto provocado.

Precisamos estar alertas com essa situação. Os animais merecem e precisam de todo nosso respeito, cuidado carinho e atenção, mas não devemos humaniza-los. Faz muito mal a nós e muito mais mal a eles.

# um coração quente para os de nariz frio

*A autora é Médica Veterinária atuante na clínica de pequenos animais e registrada no CRMV-RJ sob nº 5145

Email de contato: Ana.cerqueiro@gmail.com

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